A palavra orgia é derivada de ὄργιον, termo grego relativo a rituais sagrados que aconteciam na antiga Grécia e arredores, cultuando deuses como Cibele (a Megale Meter Theon, grande mãe dos deuses, guardiã da maternidade e fertilidade) e Dionísio (o transbordante deus do delírio, do vinho e das artes da cena). Estas eram festas catárticas e extáticas que envolviam, além do uso de bebidas alcóolicas e plantas psicotrópicas e enteógenas, também performances das mais variadas. As líderes sacerdotisas cantavam em coro, os grupos preparavam oferendas aos deuses, soldados nus realizavam danças batendo as espadas em seus escudos para afastar o mau agouro, cortejos ao som de tambores, chocalhos, flautas e pratos de bronze desciam das montanhas e passavam pela beira do riacho, alguns jovens viviam sua iniciação no culto orgiástico e outros muitos experimentavam todas as formas de prazer, aproveitando o banquete, a oferta constante de comida, bebida e todas as formas possíveis de sexualidade. As orgias tinham um componente político importante. Nesses acontecimentos, as pessoas levavam seus corpos a atravessarem todos os limite para alcançarem o oculto e o desconhecido que a vida cotidiana desconsidera. Naqueles encontros radicalmente prazerosos com a fantasia e com o outro, eram negociadas e elaboradas noções importantes para os outros momentos da vida comum.
Na história da tradição cristã, o corpo se tornou o continente da mancha da traição original, o desejo virou reflexo da concupiscência, o sexo se tornou pecado e tabu, o encontro com o outro se tornaram risco, medo e agonia, o sagrado foi privatizado, o delírio se tornou a negação da razão que deus nos deu. Como ninguém é de ferro, os povos alcançados pela cristandade também deram seu jeito de brincar. Sua orgia foi reservada aos dias anteriores à quaresma e ganhou o nome de Carnaval. No Brasil, essa festa alcançou seu auge e misturou as referências, memórias, narrativas e experiências de diferentes povos, compondo carnavais dos mais diversos. Como as orgias gregas, o carnaval também é marcado por um caráter ritualístico, coletivo, catártico, extático, prazeroso, transbordante, delirante, fantástico e necessariamente negocial, inventivo e político.
Essa é a festa das transformações, das transgressões, da impermanência, da incerteza, da flexibilidade, do oculto, do desconhecido, do ainda-não, do agora-sim, da rejeição do princípio conservador. Essa festa é anti-tradição, é a rebeldia, é a fluxo desestabilizador das estruturas de poder e controle, é o grito contra a unidade, é a convulsão abusada de outras belezas, é a orgulhosa vulgaridade, é a desproporção, é a monstruosidade, é uma chance vigorosa para a escatologia, é a descoberta heurística de novos corpos, seres e prazeres, é a narrativa inacabada, é o tempo espiral e fractal, é o anti-binário, é o pluricentrismo, é a multiplicidade, é o labirinto de espelhos, é a galhofa, a heresia, a profanação, a violação de decoro – e é tão amoroso! O carnaval é a produção cultural contra-institucional por excelência. Num tempo em que sentimos tanto a urgência da invenção de novas éticas, de novas de forma de negociação do real e de construção do comum, o Carnaval opera transformações e nos ensina. Como seria se a gente tivesse prazer na luta política? Se a gente gozasse enquanto constrói novas possibilidades para a vida comum?
O Baile da Aurora Sincera nasceu justamente com a intenção de investigar e expandir a interseção entre Arte, Carnaval e Política. Neste ano, convidamos o artista Rafael Bqueer para ser responsável pela curadoria dessa exposição.