“Quando amamos, podemos deixar nosso coração falar.”
bell hooks, Tudo sobre o Amor, p.26
Ao longo de quase três décadas, Rochelle Costi desenvolveu continuamente um de seus trabalhos mais icônicos: Coleção de Artista (1993-2022). Por volta de 200 objetos representando corações foram gradativamente reunidos pela artista, trazidos de viagens, encontrados por acaso, ou recebidos como presentes. O gesto de colecionar e organizar fragmentos do mundo esteve presente na obra de Rochelle desde seus primeiros experimentos e se manteve constante durante toda sua trajetória. O interesse pela intimidade e afetividade como dimensões primordiais de sua prática também se mostrou estruturante desde muito cedo. Mas, ao observar as particularidades deste trabalho, encontramos chaves importantes para compreender o cerne de sua prática.
Quando Rochelle nomeia esta obra “Coleção de Artista”, em um comentário sobre o próprio fazer artístico, ela nos apresenta a pergunta “o que colecionam os artistas ao longo de suas vidas?” e nos responde com um conjunto de corações. Mas, se artistas são produzidos por suas obras enquanto as produzem, o que o fato de colecionar corações ao longo de quase 30 anos nos diz sobre Rochelle, uma artista produzida por uma sequência de encontros significativos com corações?
No quarto de Costi, essa coleção ocupava a parede atrás de sua cama, como um retábulo para sua intimidade, cenário de seus sonhos, primeira visão ao acordar, companhia nas viagens entre sono e vigília. Cada um, uma extensão de si. Cada um, uma companhia nessa misteriosa aventura consubjetiva e tecida pelas intimidades que são a vida.
Há um pouco mais de um ano, Rochelle Costi fez a passagem para ser amor em outras dimensões. No marco dessa data, o Solar dos Abacaxis organizou essa exposição-ritual coletivo, convidando artistas para realizarem corações em sua homenagem. A obra que habitava o íntimo do seu quarto e esteve exposta algumas vezes em espaços expositivos, agora ganha a companhia de mais de 300 corações tocados por Rochelle, enviados de todas as regiões do país.
Ao oferecerem seus corações em homenagem a Rochelle, cada um dos quase 350 artistas integrantes desta exposição nos relembra da importância da prática do amor como política, como forma de construção do comum. A autora bell hooks em seu livro ‘Tudo sobre o Amor’ nos alerta que, com o afastamento do amor, “nos arriscamos a penetrar em um quadro de selvageria de espírito tão intensa que talvez jamais encontraremos o caminho de volta”. Mas, para isso, encontramos resposta na voz da cantora argentina Mercedes Sosa: “¿Quién dijo que todo está perdido? Yo vengo a ofrecer mi corazón.”
São Paulo foi a cidade escolhida por Rochelle, onde a artista realizou a maioria dos seus trabalhos, construiu afetos e parcerias de longa data. É uma grande realização estarmos em parceria com a Casa do Povo apresentando esse projeto na cidade que a artista escolheu, em um centro cultural que revisita e reinventa as noções de cultura, comunidade e memória. Essa é a primeira exposição do Solar dos Abacaxis em São Paulo e é uma honra estarmos dentro desse espaço histórico que produz cultura cotidianamente de maneira viva e pulsante.
A Casa do Povo (SP) e a Casa de Cultura Mário Quintana (RS) receberam obras em suas cidades no ano passado para realização da exposição e agora abrem suas portas para expor a mostra que após o período expositivo em São Paulo seguirá para Porto Alegre antes dos corações serem doados para o instituto que será responsável por cuidar do acervo e memória de Rochelle Costi.