Manjar

Manjar: Anna Bella Geiger – circa MMXVIII

Em meados do século XX, quando já era um prédio centenário, o Solar dos Abacaxis passou a ter como proprietária uma importante poetisa e feminista brasileira chamada Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. Esta enérgica visionária defendia os direitos das mulheres e dos estudantes e incentivava reuniões de artistas, criadores e agentes da política em sua própria casa, aqui, onde hoje é a nossa sede. Sobre o Solar dos Abacaxis, ela escreveu nos anos 1950 um poema intitulado “UTOPIA”, que inicia com os seguintes versos: “Essa casa vai ser algum dia / um centro de ciência e de arte / um refúgio da história e da poesia. / Aqui, os jovens virão sonhar / (…) E eu não verei, / e eu não verei (…)”. Mas nós já vemos.

Neste 29 de setembro de 2018, dia tão importante para a luta pela democracia no Brasil, nós celebramos aqui a força das mulheres. São as mulheres que reafirmam nesta data, nas ruas e no Solar, seu protagonismo na agência das transformações do país. Esta é uma homenagem à Anna Amélia com uma reunião de obras de Anna Bella.

No momento em que o Brasil experimenta o luto insuperável pelo incêndio do Museu Nacional (1818-2018) e em que discutimos o futuro diante da possibilidade da volta dos “profissionais da violência” ao poder em Brasília, Anna Bella Geiger preparou uma ágil e contundente exposição que ecoa estas urgências de nosso tempo. A artista, nascida em 1933, viveu na pele a perseguição e repressão dos Anos de Chumbo. Durante a Ditadura Militar, foi artista, educadora, mulher e mãe de quatro filhos. É a partir dessa perspectiva que, aos 85 anos, ela vem refletindo sobre o crescimento das ondas fascistas no mundo inteiro – e, novamente, sobre o papel da arte diante disso.

Para esta mostra, Anna Bella Geiger desenvolveu uma instalação inédita da série CIRCA em que nos propõe um sobrevôo em relação a um sítio arqueológico que reúne vestígios da presença humana sobre a superfície do mundo em diversos locais e eras. Aqui estão restos das pirâmides egípcias, partes das piscinas palestinas, o desastre da Samarco em Mariana, frutos da Bauhaus, jardins babilônicos. Este circa, pela primeira vez, é construído de forma que podemos caminhar, circular, de forma a perceber o esgarçamento das experiências da escala temporal e espacial.

Há aqui também um conjunto de gravuras da série “Rrose Sélavy” realizadas sobre capas de jornal especialmente para esta exposição. Nesta série, Anna Bella insere impressões serigráficas com padrões de mapas-nuvens-camuflagens e também colagens de papel vegetal com os rostos de Duchamp e de seu alter-ego feminino Rrose Sélavy sobre jornais, relacionando-os com as imagens e textos dessas publicações.

Apresentamos um conjunto raro e vibrante de gravuras dos anos 1970 das séries “Superfícies Lunares” e “Polaridades”. Com quatro filhos, em um contexto da severa repressão, em que havia muito medo em se falar sobre a situação política do país, Anna começou a imprimir as superfícies lunares para que, sobre esse território neutro (a Lua), pudesse falar com segurança e liberdade. O território da Lua, retirado das primeiras imagens das crateras realizadas pela NASA, se tornaria um “território livre”, um espaço gráfico-político-imaginário de Anna Bella, a partir do qual inseriram-se também as polaridades. Aqui, Anna Bella imanta no Solar a qualidade de superfície lunar, nos faz afirmas que “aqui é o centro”, nos faz perceber as trevas avançarem sobre o território brasileiro, mas nos lembra que tudo é finito e logo virá um mar de tranquilidade.

Apresentamos ainda uma programação de vídeos das décadas de 1970 e 1980, incluindo uma inédita versão colorida e remasterizada do clássico “Local da Ação”, que se tornou preto e branco após os militares terem passado o filme em uma máquina de raio-x a caminho da Bienal de Veneza. Ao nos fazer lidar ao mesmo tempo com a dureza do real e com os processos delirantes de deslocamento e imaginação, Anna Bella quer, à sua forma, estimular que nos movimentemos de maneiras e para direções inovadoras. Como Anna Amélia sabia, esse é o lugar certo para isso: o Solar é onde xs “jovens virão sonhar”.

Essa exposição é fruto de longa pesquisa, colaboração e troca entre Anna Bella e o Solar dos Abacaxis e vem sendo elaborada aos poucos há 2 anos, desde que a artista fez sua primeira colaboração em um MANJAR em outubro de 2016. O Solar preza muito pelo privilégio que é poder responder em sua programação expositiva e educativa com rapidez e calma aos acontecimentos no campo político e social, no Rio e no Brasil. A presente mostra foi catalisada pelo atual cenário em que nos encontramos, e propor a reunião de nossos corpos nesse momento tem o sentido de celebrar as maravilhas que podemos realizar quando juntos, nessa época circa MMXVIII.

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